CONHECIMENTO

Cracolândia: Uma questão de saúde pública

A miserabilidade social

por Alex Goulart Baseia*

Nessa análise sobre a Cracolândia, seguiremos por uma linha de pensamento um pouco diferente do que costumamos ver nos noticiários da tarde do jornalismo televisivo, não abordaremos operações policiais ou sobre o traficante mais perigoso da região. Seguiremos uma outra linha de pensamento, em outro contexto. Nosso objetivo é apontar que a Cracolândia é também fruto de fraquíssimas ou quase inexistentes políticas de saúde pública, de educação precária e, principalmente, da miserabilidade social de nosso povo, uma miséria estrutural e enraizada em nossa sociedade. E essa miséria social e econômica tem cor e etnias. Ela tem seu início na escravidão secular que perdurou nessas terras, e depois ganhou um grande impulso com a mentira da libertação dos escravos, afinal, a tal libertação apenas jogou as pessoas nas ruas, sem orientação, sem trabalho, moradia ou dignidade. Uma falsa abolição, sem o mínimo direito a indenização. Obrigados a voltarem a trabalhar em condições muito semelhantes às que já viviam.

Assim foi formada nossa sociedade, de um lado descendentes dos colonizadores, escravocratas, mantendo a sua riqueza através do direito de herança, enquanto que a outra parte, formada por negros (afrodescendentes) mestiços e indígenas, herdou a miséria em todas as suas faces. E logo adiante se misturando aos imigrantes operários europeus, que, na maioria dos casos, também vinham de um sistema análogo à escravidão, construído em abismos sociais e econômicos.

Vivemos em uma sociedade de extremos econômicos, sociais e políticos. A Cracolândia nada mais é do que reflexo de toda essa desigualdade e sofrimento, fruto da miserabilidade social.
É muito fácil julgarmos as pessoas da Cracolândia sem ao menos conhecermos suas histórias, suas dores. Muito fácil também é falar de escolhas, principalmente aqueles que têm escolhas.
O tráfico de drogas é uma rede internacional, comandada por pessoas poderosas que mandam e desmandam no mundo. Pessoas influentes na política, nos exércitos, na elite da sociedade. A droga sempre foi utilizada em toda a história, faz parte de rituais, tratamentos médicos, festas etc. Está presente em todas as classes sociais. Inclusive, as três drogas que mais matam no mundo são muito populares e economicamente muito rentáveis, como o cigarro, o álcool e o açúcar refinado(que, além de alterar a percepção, é de grande poder viciante e gera várias doenças, como por exemplo a diabetes). Mas muitas drogas foram usadas através dos tempos como forma de controle social, ou descontrole social. Como ocorreu na década de setenta nos Estados Unidoscom a heroína, implantada nos bairros (guetos) negros e pobres na época das lutas pelos direitos civis, ou o ópio, implantado pela Inglaterra na China e na Índia para desestruturar as lutas por Independência. O mesmo aconteceu com o crack e com a droga mais recente, a K9.

Os ricos também usam drogas e se viciam como todo mundo, mas usam as drogas de ótima qualidade, (como, por exemplo, o Whisky envelhecido de 20 anos, a cocaína com grande nível de pureza, por aí adiante), causando efeitos bem menos nocivos à saúde e, além disso, sua condição econômica lhe permite buscar tratamentos de primeira linha, clínicas perfeitas, spas, com suas casas luxuosas, orientação de excelentes profissionais. E conseguem com essa estrutura manter sua imagem inabalável. Possibilitando, assim, se manterem protegidos de todo julgamento social. O que não acontece do lado dos pobres, sem dinheiro, sem trabalho, com fome e sem esperanças. E sendo apedrejados socialmente, tendo famílias muitas vezes destruídas. O vício nas drogas é comprovadamente um domínio sobre o indivíduo, cada pessoa e cada organismo reage de forma diferente, existem pessoas que ficam completamente dominadas física e mentalmente.

A Cracolândia (em São Paulo) surgiu na década de noventa, justamente nesse contexto, em um imenso processo de degradação urbana, em meio a uma pequena comunidade de moradores de rua, em um dos lugares mais propícios para seu crescimento, junto aos miseráveis, às pessoas mais vulneráveis e destroçadas socialmente.

Alguns levantamentos estatísticos feitos pela Universidade de São Paulo: 56,8% dos dependentes vivem ou dormem no local:
43% passaram a viver na Cracolândia por conflitos familiares.
9,5% por violência doméstica.
Muitos frequentadores estão lá há pelo menos 10 anos.
Muitos estudos também apontam que boa parte das pessoas que formam a Cracolândia são migrantes de outros estados, com problemas de moradias e empregos.
O pesquisador Marcelo Batista Nery, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) e do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP), no Programa Cidades Globais, também da USP, afirma que:“A questão da Cracolândia não envolve apenas o tráfico e o consumo de entorpecentes, como também a violência domiciliar e intrafamiliar e a intervenção ou não do poder público”.
A solução para a Cracolândia passa também pela questão de moradias, afirmam especialistas.
É impossível resolver a situação de rua sem pensar na moradia em primeiro lugar.
Diz osociólogo Marquinho Maia, a respeito do aumento de dependentes químicos na Cracolândia: “a partir do momento em que a pessoa tem lugar para estar, a assistência social e a saúde pública conseguem atender melhor. O cuidado tem que ser feito em liberdade, não existe cuidado sem liberdade.”
Na opinião de Toni Zagato, mestre em políticas públicas e especialista em patrimônio cultural: “O poder público usa milhões para desapropriar. Nesse processo, ele despeja todo mundo e lacra os imóveis, muitas vezes, são considerados patrimônios culturais e não podem ser lacrados, o que é uma descaracterização do imóvel. Eles nem disfarçam que isso é um teatro; eles deixam somente a fachada, feito uma cenografia de teatro, e atrás fazem uma construção que despejou 300 famílias e que não vão habitar mais esse lugar. Eles vão conceder isso para outras pessoas, que são de fora. Isso é um feudo, é arcaico, é colonial, e acontece no centro de São Paulo.”

O poder público “tenta sanar” o problema, mas o máximo que consegue é transferência de um lugar para o outro, assim vive a Cracolândia, migrando de lugar a outro. Hoje ela está situada na rua Helvetia, na região dos Campos Elíseos, no centro da cidade. No último levantamento do governo, atualmente a Cracolândia tem uma quantidade de 1343 pessoas, aumentando a cada dia, assim como a população em situação de rua. Não podemos esquecer as crianças que frequentam o local, sofrendo muitas vezes diversos tipos de abusos, principalmente sexual. Um dos maiores erros dos governos é tratar o caso como questão policial e não de saúde pública, o que faz com que a Cracolândia apenas mude de local, ou também de mero assistencialismo, empurrando a sujeira para debaixo do tapete. A solução tem que passar por questão de saúde pública e social. Moradias decentes, empregos, tratamentos médicos e muita solidariedade social.
Um amigo me disse uma vez: “é comum falar da violência dos meninos de rua contra a sociedade, mas pouco se fala da violência da sociedade contra os meninos de rua”, o mesmo cabe para a Cracolândia, que é composta majoritariamente por pessoas violentadas socialmente, politicamente e economicamente. Reflita bem antes de julgar.

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*Estagiário da Faculdade Cruzeiro do Sul. Fonte: “Os Índios do Bom Jesus Conselheiro. Notas sobre história e presença indígena em Canudos”, de  Felipe F. V. Vender.

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Dalmo Oliveira

Dalmo Oliveira é jornalista profissional desde 1991. Foi repórter em O Norte e no jornal A União. É apresentador do radiofônico ALÔ COMUNIDADE, na Rádio Tabajara AM. É também assessor de Comunicação e servidor público desde 1994.

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