A distopia da Irmandade Brasileira
Musical com composições de Chico César mostra a alma brasileira de João Ubaldo
por Dalmo Oliveira
Entre a obra literária e a montagem teatral sempre ocorre uma metamorfose inevitável. Primeiro porque a narrativa escrita está fixada, enquanto o discurso teatral é essencialmente interpretativo, fluído e se apoia em várias plataformas. Mas quando você transporta o texto para uma peça musical, aí se danou.
Viva o Povo Brasileiro [de Naê e Dafé], que lotou o Teatro Paulo Pontes do Espaço Cultural em João Pessoa, nos dias 19, 20 e 21 de julho, é um espetáculo grandioso (em vários sentidos) a começar pela duração de 180 minutos, dividido em dois atos interruptos.
Baseada no clássico lançado em 1984 de João Ubaldo Ribeiro (1941 – 2014), a montagem do dramaturgo André Paes Leme evidencia que o teatro feito no Brasil já tem bagagem para oferecer espetáculos de folego, nos mesmos moldes de uma Broadway de Manhattan ou do West End Theatre londrino.
O que me deixou mais positivamente surpreso, entretanto, é a versatilidade do elenco, com Alexandre Dantas (Feitor), Guilherme Borges (Barão Perilo Ambrósio), Izak Dahora (Nego Sabino), Lucas dos Prazeres (Nego Feliciano), Jackson Costa (Amleto), Júlia Tizumba (Vu/Iansã), Luciane Dom (Dadinha), Maurício Tizumba (Nego Leléu), Sirlea Aleixo (Caboco Capiroba/Vevé/Naê), Sara Hana (Maria Dafé).
Todos do elenco principal tocam algum instrumento e cantam durante o espetáculo. Também realizam performances de danças. Tambores são a base da sonoridade, mas o acordeon de Guilherme se destaca. Ele também toca arpa, teclados e canta com desenvoltura. Aliás, a atuação desse ator trouxe um diferencial para o musical de Paes Leme. Na figura do Barão de Pirapuama, Borges quebra o ritmo mais sisudo da narrativa ubaldiana. Faz um contraponto e atualiza o texto com seus gracejos, tiradas e com sua performance desengonçada, trajando, quase sempre, uma espécie de pijama que ressalta sua pança ditosa.
Maurício Tizumba cai como uma luva no papel do “Nego Leléu”, o alfaiate preto alforriado, que ascende socialmente na Itaparica do século 17, costurando para a burguesia luso-brasileira do período. Com uma carreira musical consagrada, especialmente nas Minas Gerais, Tizumba trouxe sua expertise musical com a música negra para a praia do teatro. É ele quem referencia na peça as sonoridades da charamela, do tambor zimbrado, do balafo de mão, da gunga de batalha, do adufo, dos pandeiro redondo, de atabaques, agogôs e dos ganzás.
Os sons ao redor
Os tambores também servem de inspiração para os microtablados de madeira usados pelo elenco para cenas esporádicas de discursos narrados pinçados do romance. Os atores tocam ainda rabecas, abês, macumba, cavaquinho, violão, viola, trompete e apitos. E têm uma banda permanente segurando a base sonora do musical.
Na condição de musical para teatro, o espetáculo possui uma acuidade sonora impecável, com todas as canções sendo executadas “aos vivos”. Usando tecnologia de ponta, com microfones tipo headset, grudados ao rosto. No Paulo Pontes, a acústica e sonorização estavam tão excelentes que, em dado momento, o espectador poderia desconfiar que se tratava de playbacks. Mas é puro profissionalismo mesmo, sob a direção musical e trilha original de João Milet Meirelles e desenho de som de Gabriel D’Angelo. Tudo isso polindo com esmero as composições originais de Chico César, responsável pelas 27 peças que embalam o musical. Baixe aqui a música Palavras da Fé, trilha sonora original do musical.
Tanto o texto de Ubaldo Ribeiro, quanto o musical, produzem uma espécie de inversão semântica, que Bakhtin, acertadamente define como sendo uma “carnavalização”, cujas principais características seria um uso (dialógico) das significações ao avesso, com uma variação perturbadora entre altos e baixos, provocando o riso (catarse) com cenas grotescas, ambivalentes, às vezes desconexas.
Anderson Aragón, diretor-assistente do espetáculo, informou que as mulheres, que participaram do primeiro momento de definição da montagem, puderam ajustar a narrativa da dramaturgia para evitar falas de Ubaldo que não fariam mais sentido no mundo atual.
O mundo marinho
O musical está quase ambientado no, assim chamado, “ambiente marinho”: Baleias, mares, praias, pescadores, marisqueiras e… estuários, que são reinos de Nanã e de Iemanjá. Daqui em diante nós vamos mirar na mitologia de João Ubaldo. Evidentemente, não é um romance sobre o Espiritismo das reencarnações kardecistas. Almas e anjos passeiam ao lado do panteão iorubá. De geração em geração, a obra conta as sagas de brasileiras e brasileiros viventes da Terra da Vera Cruz. As personagens funcionam como testemunhas (e protagonistas) d‘algum momento da vida brasileira. Um século depois da chegada das primeiras caravelas.
Mais que a construção de trajetórias espirituais errantes, a saga literária empresta ao teatro a evolução de uma “civilização tupiniquim”, atravessada pela colonização lusitana nas terras americanas e o encontro forçado de europeus com o mundo tupi-guarani, amalgamado pelas culturas africanas dos bantos, nagôs e hauçás, principalmente. É essa a proposta de Ubaldo ao intuir a criação da “Irmandade do Povo Brasileiro”. Nada mais socialista!
No ilhéu litoral de João Ubaldo, a jangada e as baleeiras trafegam de uma margem para outra, tendo a Baía de Todos os Santos (e Santas) como abismo marinho que separa o povo itaparicano das gentes civilizadas da Primeira Capital, no território consular. A cena das baleias é uma das mais belas do espetáculo, com balões translúcidos divertindo os atores e atrizes brincantes. É também aí o único momento romântico, entre Sabino e Dadinha.
Cenografia
Os imensos varões, manipulados com maestria pelo elenco, ocupam lugar de destaque nas soluções magníficas encontradas por Natália Lana. Com eles os atores desenvolvem momentos de luta, cortejos e até uma jangada imaginária que tem uma rede de pescar como vela. Os cortinados que despencam das alturas dão os tons das cenas: vermelho nas batalhas e conflitos, azul para os cenários marinhos e cores escuras nos momentos emocionalmente nebulosos. A canastra ancestral também vem do céu. É uma cenografia simples, mas eficaz, realçada pelo figurino cuidadoso desenhado por Marah Silva. Eu senti falta do elemento fogo ou de sua representação no palco, por que o romance (que atravessa ao menos três séculos) está repleto de guerra, incêndios, etc.
Mesmo com a extensão avantajada do espetáculo, o resultado final é primoroso. Mostra a pujança do atual status quo da criação teatral brasileira. A iniciativa em mobilizar atores aprendizes nas cidades aonde o musical fica em cartaz, que atuam como “figurantes de luxo”, foi uma sacada inovadora. E viva o Teatro brasileiro!
\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\
*Dalmo Oliveira é jornalista, radialista e cordelista